A moral do Super-herói e o que ela pode ensinar para o brasileiro


Eu leio quadrinhos de super-heróis desde criança (em 2015 “comemoro” 27 anos como orgulhoso leitor de hqs) e não seria exagero dizer que uma boa parte dos meus valores morais vêm dos super-heróis (mescladas, é claro, com os valores dados pelos meus pais, que felizmente não contradizem o que os super-heróis defendiam). Não que eu tenha uma ética tão sofisticada quanto a dos super-heróis, mas esse costuma ser meu ponto de referência e minha principal aspiração.


Uma das coisas que de cara eu entendi, mesmo na tenra idade, foi a relação de proporcionalidade entre poderes e responsabilidade* uma vez que, quanto maiores os poderes, maiores são as consequências de qualquer atitude tomada. Essa responsabilidade não é apenas social, ela é, principalmente, moral. É necessário que pessoas superpoderosas tenham um nível de refinamento ético proporcional ao dano que podem causar com suas decisões para que não acabem fazendo uma merda colossal que colocaria em risco uma porrada de pessoas.

Um exemplo bem simples: Num arco de histórias do Flash chamado “Flashpoint”, o herói volta no tempo e impede a morte da mãe. Isso faz com que a história seja reescrita e siga um caminho diferente, criando um mundo muito pior do que a versão original. É claro que todo mundo se sentiria tentado a salvar a própria mãe, e ninguém julgaria o personagem por isso. Mas um único e “pequeno” ato egoísta por parte de um personagem capaz de viajar no tempo com seus poderes simplesmente reescreveu a história do planeta. Por isso é necessário que o super-herói se coloque numa posição ética mais sofisticada que a de uma pessoa sem superpoderes. Qualquer um faria o que Flash fez se tivesse a oportunidade; mas as consequências dessa atitude são desproporcionalmente maiores para quem tem mais “poder”.


Embora super-heróis existam apenas na ficção (até onde sabemos), o conceito por trás da relação poder/responsabilidade é muito real, e não é preciso pensar muito para encontrar exemplos análogos. Basta pensar num médico ou um piloto de avião, que têm nas mãos a vida dos pacientes; um professor, cujo erro (seja de caráter ou de instrução) pode ter implicações profundas no futuro dos alunos; ou simplesmente um pai/mãe segurando uma criança de colo enquanto tenta fazer uma outra tarefa, arriscando derrubá-la.

E não preciso nem dizer que os nossos superpoderes no mundo real são bastante subjetivos. Para seu(ua) filho(a), sua(eu) irmã(o), seus alunos ou seus pacientes, você é o super-herói. Você detém o poder. Então não são apenas os “poderes” óbvios da sociedade que te tornam um super-herói (ou um super-vilão) para alguém. Todo mundo tem algum tipo de superpoder que pode afetar alguém, para o bem ou para o mal.

Há vários níveis de “poderes” e, portanto, variações na responsabilidade moral. O problema é que não existe um “nível” de moral, por assim dizer. É claro que, se você estiver acompanhando o texto com um pouco de atenção, talvez vá pensar: “mas peraí, você não disse que, quanto mais poderes, maior a ética?” Não. Eu disse que quanto maior o “poder”, mais “refinamento ético” é necessário. Ética, diferente de “poder” ou autoridade (que também é um tipo de “poder” no mundo real) não aumenta ou diminui com o tempo: é algo que se aprende, através da cultura e especialmente da educação (formal ou não) e que pode ser apenas refinada com conhecimento e, principalmente, empatia.


E essa é a coisa mais fantástica a respeito dos super-heróis: Não são os super-poderes que determinam se você é um super-herói ou não (super-vilões também possuem superpoderes, é bom lembrar), e sim o que você faz com estes poderes. Em outras, palavras, o super-herói é, na verdade, o conjunto de valores morais do seu alter ego. E a conclusão disso é óbvia: Não são os poderes que dão ao super-herói seus valores; isso é algo que vem da própria pessoa, da sua criação, da sua educação, da sua cultura. A forma como o herói usa seus poderes depende de conjunto de valores morais que ele já possui, e não o contrário.

Da mesma forma, sua profissão, sua renda ou seus privilégios na sociedade (seus “superpoderes” do mundo real) não são capazes, por si só, de transformar você numa pessoa ética, nem de gerar valores morais refinados; isso tem que vir bem antes.

A essa altura do campeonato (se teve saco para ler até aqui), você deve estar se perguntando o que diabos isso tem a ver com o brasileiro, como citado no título. Bem, na verdade, tudo.

Muito tem se falado sobre corrupção nos últimos tempos - o que é ótimo, diga-se de passagem. E um dos tópicos mais comuns é que a corrupção não é um mérito (ou demérito) apenas do corpo político do nosso país, e sim um aspecto culturalmente enraizado, pois no dia a dia cometemos pequenos atos de “corrupção” também.

Sempre que esse assunto vem a tona, é comum ouvir críticas vorazes, de pessoas ofendidas com tal comparação. Afinal, atravessar o sinal vermelho não é nada perto de desviar milhões do contribuinte. Na cabeça dessas pessoas, essas situações não podem ser vistas como mesma coisa. O problema é que são, sim, a mesma coisa.

Relembrem os parágrafos anteriores, sobre a relação entre poderes, responsabilidade, consequência, e valores morais. Chegamos a conclusão que, com mais poderes, temos que ser mais responsáveis; no entanto, essa responsabilidade vem de valores morais que não são intrínsecos a esses poderes; são anteriores. Esse é o cerne do assunto “corrupção” no Brasil e justamente o ponto que passa batido por boa parte das pessoas - se não pela maioria.


Imagine que eu seja uma pessoa que, toda vez que vejo que recebi 2 reais a mais de troco e o caixa não percebeu, eu resolva ficar com eles. Afinal, o que são dois reais? Não é nada, não é mesmo? Agora imagine que eu seja eleito a um cargo no congresso. Que motivos você teria para achar que eu não vou agir da mesma maneira quando eu tiver milhões em “troco a mais” nas mãos? Como já dizia minha mãe, quem é capaz de pegar 2, pega, 10, pega, 100, pega 1000...

Imagine que eu estaciono sempre numa vaga de deficiente quando não há outras disponíveis. E me torne juiz. Se eu me acho no direito de estacionar na vaga de deficiente, o que faz pensar que eu não farei o mesmo com os privilégios que ganho agora que sou juiz?

Outro exemplo: atravesso o sinal vermelho sempre que tenho oportunidade. Porque eu agiria diferente sendo um parlamentar? Se eu acho justificável atravessar o sinal vermelho (seja por “pressa”, por estar atrasado ou qualquer outra coisa), por quê eu não me sentiria justificado a burlar a lei também no congresso para garantir conforto para minha família?

Eu poderia citar mais uma porção de exemplos, mas acho que a base está aí. Sim, o crime tem proporcionalmente mais impacto quando se possui mais “poder”. Mas os valores éticos que permitem (ou impedem) uma pessoa de cometer um ato moralmente errado não vem com o cargo, nem com a autoridade, nem com os privilégios, vem com a cultura. E, se nós cometemos pequenos atos de corrupção no dia a dia, nós certamente cometeremos atos de corrupção em posições maiores de poder. A diferença é que, nestas posições de poder, as consequências são desproporcionalmente maiores. Grandes poderes, grandes responsabilidades. Sem valores éticos prévios, não há como impedir que isso aconteça.

Então, sim, receber troco a mais e ficar quieto é, moralmente, tão errado quanto receber milhões de propina. Não é porque as consequências são menores que o ato se torna moralmente correto. Continua sendo errado. É uma verdade incômoda, mas ainda assim é verdade.


É verdade que é possível argumentar contra minha lógica, dizendo que, mesmo que ela seja válida, alguém que cruza o sinal vermelho não é o parlamentar que desvia milhões. O segundo prejudica mais pessoas que o primeiro. É um argumento válido. Pode até ser que o primeiro prejudique menos pessoas que o segundo (descartando, é claro, a possibilidade de o motorista causar um acidente de trânsito por ter passado o sinal vermelho). Mas isso não o torna melhor, não é? Que direito você tem de julgar alguém, se você provavelmente faria a mesma coisa no lugar do dito cujo? Então o Brasil se reduz ao que? A um país onde quem é “menos” corrupto pode se dar ao direito de julgar quem é “mais” corrupto, só porque fez menos merda?

Não existe isso de “mais” ou “menos” corrupto, isso é uma ilusão para nos isentar da responsabilidade e ignorar que somos parte do problema. Corrupção, como ética, não possui “níveis”, e sim consequências, maiores ou menores, baseadas no nível de poder. Mas corrupção é corrupção. E, se queremos que o país se veja livre de corrupção um dia, devemos, é claro, criticar o governo, pressionar para que punam políticos que cometeram crimes. Isso é óbvio e ninguém vai discordar (publicamente, pelo menos). Mas, principalmente, precisamos lembrar que não adianta livrar a casa das baratas agora, mas manter a casa suja. Sempre haverá novas baratas para tomar o lugar das anteriores, sempre em busca da mesma coisa que atraiu as outras baratas em primeiro lugar.

Precisamos lembrar de criar valores morais relevantes para a sociedade que queremos construir para que, quando os novos políticos cheguem ao congresso, eles tenham o refinamento ético necessário para arcar com os poderes que foram lhes dados. Assim como os super-heróis dos quadrinhos, que tiveram pais (adotivos ou biológicos), que lhes ensinaram o quanto é importante, num mundo na qual a vida em grupo é a base, todos nós temos essa responsabilidade quanto ao grupo**, quanto ao outro.

É claro que provavelmente isso não vai extinguir a corrupção por completo. Mas com certeza a tornará uma exceção ao invés da regra. E, tendo uma sociedade onde a maioria não for capaz de “pequenos” atos de corrupção, teremos um congresso onde a maioria não será capaz de “grandes” atos de corrupção. E a corrupção se torna cada vez menor, mais fácil de detectar, e mais simples de corrigir.

Mas, para isso, será necessário que a gente pare de querer que os super-heróis sejam parecidos conosco... E, ao invés disso, busquemos ser mais parecidos com os super-heróis.




*E se você lembrou do Homem Aranha, você deve ser tão nerd quanto eu.
**É claro que o “grupo” também inclui você, então você deve pensar também no que é bom pra você, e isso pode insinuar um falso conflito de interesses. Mas esse é um outro assunto, para outro momento.