O fundamentalismo nosso de cada dia


Você deve provavelmente estar pensando que este texto vai falar sobre fundamentalismo religioso. E, de certa forma, até vai. Mas religião não é exatamente o assunto deste texto, embora seja, é verdade, o ponto de partida.



Muito tem se falado sobre a questão do fundamentalismo que, vamos admitir, é uma palavra usada de forma bem leviana hoje em dia e cuja definição já está bem mais abrangente do que em outros tempos. Creio que dá para dizer que, pelo menos nas redes sociais, quando se fala em fundamentalismo religioso, se está mesmo é querendo falar da tentativa de alguns grupos religiosos de empurrar ou impor seus valores, suas vontades e/ou suas agendas próprias para outros que não seguem a mesma religião. Então, neste texto, usarei o termo “fundamentalismo” neste sentido, ou seja, querendo me referir a quando alguém ou algum grupo quer impor seus valores sobre outros.

Fonte: Digital Journal.
Charge de John Thomas Didymus.
Este fundamentalismo ao qual me refiro no texto não é novidade no mundo, e nem é novidade no Brasil, só que sempre foi mais sutil. Em outros tempos, eram Testemunhas de Jeová batendo todo domingo de porta em porta para pregar a palavra; era no ensino religioso (que na verdade era ensino cristão) nas escolas públicas, é o automático batismo dos filhos na igreja católica; são os símbolos cristãos nas instituições governamentais; é a “santinha” que passa de casa em casa (vocês sabem a que me refiro? É muito comum aqui na minha cidade, mas não sei se acontece no país inteiro). Tais coisas sempre foram tão comuns no nosso dia a dia que sempre passaram despercebidos, tanto que poucos hoje veriam qualquer uma destas atitudes como "fundamentalistas". Mas o fato é que, vendo dentro de uma perspectiva de um Estado laico e de uma sociedade plural, são, sim, pelo menos no sentido definido para este texto (que eu não vou ficar repetindo o texto inteiro, já definimos no parágrafo anterior qual a definição de fundamentalismo que usarei aqui).

O que estes exemplos que eu dei revelam é que, por vezes, o fundamentalismo faz parte do nosso dia a dia, sem que a gente perceba. E banalizamos tanto essa prática que não nos damos conta.

Vejamos a religião por outro lado: Um evangélico que, por exemplo, não bebe por conta de seus valores religiosos, mas pode, e gosta, de sair para se divertir à noite, para dançar, ouvir uma boa música, conversar. Aí ele decide ir a um barzinho com diversos amigos que não praticam a mesma religião que ele e bebem. Até aí tudo bem; o problema começa quando tem aquele cara que fica insistindo que a pessoa que não bebe, beba. “Só um golinho!” “Você não vai pro inferno só por tomar um copo de cerveja” “É só essa vez”, e por aí vai. Acredite, eu sei como é isso. Apesar de não ser religioso, eu não bebo, e o que é mais comum quando saio na noite é as pessoas ficarem querendo me empurrar bebida com frases do tipo. Meu pai, que já foi alcoólatra e hoje não bebe há anos, começou a beber cerveja sem álcool simplesmente por conta da pressão social quando ele saía à noite, de como as pessoas se comportavam ou o que elas falavam por conta dele não beber. Como ele estava determinado a não voltar a beber, tomou a decisão de beber cerveja sem álcool para não encherem o saco dele, e segue assim desde então. Coisa semelhante acontece com os vegetarianos com frequência. E eu poderia dar outros exemplos.

Percebem onde eu quero chegar? A mesma coisa que reclamamos que certos grupos religiosos têm tentado fazer com o Estado, é o que esse cara está fazendo com um religioso: querendo impor seus valores sobre ele. Só não é visto como tal, por que beber é a atitude predominante e aceita na sociedade, assim como o cristianismo é a prática dominante que acha normal ter ensino religioso em escolas públicas, ou símbolos religiosos em estabelecimentos do governo.

Praticamos este tipo de fundamentalismo todos os dias. Quando ficamos insistindo para as pessoas conhecidas que elas não devem assistir o BBB (ou que não devem assistir TV), quando achamos que Sertanejo Universitário e Funk são coisas horrendas e que a pessoa que se preze TEM que ouvir Rock, ou que, se você não entendeu filme X, você é burro e não entende de cinema, ou quando estamos viajando com um grupo no mesmo carro e o motorista quer colocar apenas as músicas que ELE gosta por que é ele quem está dirigindo. E por aí vai. .

Esse fundamentalismo tem várias formas, mas a essência é a mesma: querermos que as pessoas façam o que a gente faz, mesmo que elas não queiram ou não achem que devam fazer. E nós fazemos isso o tempo inteiro, a todo momento. Se tem uma coisa que podemos dizer que o brasileiro em geral tem em comum é: nós queremos sempre empurrar nossos valores para os outros, como se não fosse possível que as pessoas sejam felizes (ou boas, ou bem-sucedidas, etc) pensando de outra maneira.

Este é o cerne de debates diversos da sociedade de hoje, que vão de casamento gay a descriminalização do aborto, passando pela legalização da maconha, pela regulamentação da prostituição e muitos outros. Assim como é comum (e corretíssimo, na minha opinião) dizer que não adianta querer o fim da corrupção política se praticamos pequenos atos de corrupção todos os dias (e que são tão recorrentes que não entendemos como corrupção), talvez devemos começar a pensar que não adianta cobrar o fim do fundamentalismo religioso se praticamos pequenos atos de fundamentalismo todos os dias, mas que são tão recorrentes que levamos como se fosse normal.

Charge de Cícero
É claro, não podemos confundir fundamentalismo com crítica. Temos uma tendência irritante de relativizar uma declaração ou um conceito e levar para algum extremo. No caso deste texto, posso dizer com segurança que alguém leu até aqui, e pensou algo como: "Então quer dizer que não posso falar nada do que eu acho que está errado? Não posso criticar ninguém que agora tudo é fundamentalismo?" Bem, já me antecipando à desonestidade intelectual e ao analfabetismo funcional que vem com a pergunta, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Quando você faz uma crítica, você está expondo sua opinião sobre certo assunto. Mas no momento em que quer FORÇAR as pessoas a pensarem como você, insistir que as pessoas devem seguir aquilo que você diz e se comportar do jeito que você se comporta, aí já não estamos mais falando de uma crítica.

A diferença entre crítica e fundamentalismo é bem gritante (embora pareça não ser para muitas pessoas), mas a diferença entre uma atitude não fundamentalista e uma fundamentalista no dia a dia, pelo menos aqui no Brasil, não é assim tão evidente. Prova disso é o exemplo que dei acima sobre a questão da bebida alcóolica. Está tudo bem insistir para uma pessoa que não bebe que ela beba, mas se alguém pede um minuto para ouvirmos a palavra de deus, então essa pessoa é um fanático que só pensa em deus.

Acho que não é novidade que precisamos rever urgentemente nossos conceitos se queremos uma sociedade melhor para as novas gerações. E, por mais clichê que pareça, a mudança tem que começar por nós mesmos.

Quando eu era criança e pedia dinheiro emprestado para algum amigo (um valor baixíssimo, claro, eu era criança), e demorava muito para devolver, minha mãe sempre reclamava. Se eu desse alguma desculpa do tipo: “Mas mãe, é só um real*, não faz falta pra ele”, ela sempre respondia: Não importa se faz ou não faz falta. Quem não devolve um real, mais adiante não devolve 10, depois não devolve 100, e acaba nunca devolvendo nada. Parafraseando minha mãe, se a gente não sabe respeitar o gosto musical de alguém, ou a decisão de não beber, como vamos esperar que as pessoas não interfiram na liberdade individual de outros?

Acho que seria importante avaliarmos nossa atitude em relação às pessoas que pensam diferente da gente, não só no que diz respeito à religião, mas também a pequenas coisas. Só tente não ver este texto como uma tentativa fundamentalista de empurrar para você minha opinião sobre o assunto. Não é, eu juro.





*Na verdade, isso era antes da criação do Real (moeda), mas eu resolvi usar nossa moeda atual para não dar confusão.