Nós contra eles - a demonização do outro no dia a dia

Quando eu era adolescente, fiquei fascinado quando aprendi sobre o conceito de demonização. Você já deve saber do que se trata, mas para efeitos de argumentação, funciona mais ou menos assim: você cria uma narrativa de bem e mal, em que o outro não só é um vilão, mas é alguém tão sem redenção que só merece escárnio e ser eliminado da face da terra. Eventualmente as pessoas pegam o bonde (andando) e tomam essa demonização como verdade absoluta. Frequentemente, o outro faz o mesmo com você.




Não parece algo assim tão extraordinário, pelo menos na teoria, mas na prática, tem efeitos devastadores pois, aos olhos de quem demoniza, o outro é tão “errado" que nem sequer pode ser considerado humano -ou seja, não é digno de empatia ou compreensão. Para você ter uma ideia, é possível (discutivelmente, admito) colocar todas as atrocidades feitas na segunda guerra na conta da demonização do outro.

Antes, combatentes chegaram a trocar presentes de natal com os inimigos durante a Primeira Guerra. Mas a Segunda Guerra passou a usar uma nova arma: convencer os soldados que o outro era um monstro sem alma que não merece a menor consideração. Os nazistas fizeram isso com os judeus. Os americanos fizeram isso com os alemães e japoneses. É uma tática bastante simples, mas que funciona muito bem se você quer que seus soldados exterminem o outro lado sem hesitar.

Não que essa seja uma arma recente. o Ocidente fez isso durante a escravidão dos povos africanos. Os portugueses fizeram isso com os povos indígenas. O Regime Militar do Brasil fez isso com o comunismo (com efeitos que reverberam até hoje). A Esquerda brasileira faz isso com o neoliberalismo. O Ocidente faz isso com o islamismo. Fazemos isso todos os dias com os pobres, com a população de rua, com as pessoas com limitações cognitivos. E agora fazemos isso com todo mundo.

Feminazi, Petralha, Coxinha, Bolsominion, Crente. Você já leu e ouviu algumas dessas palavras por aí, além de muitas outras. Elas servem para se referir de forma depreciativa ao outro - e por outro entenda aquele que não compartilha a mesma visão de mundo que você. É bem provável que tenham chamado você de uma dessas coisas em algum momento.

Num primeiro momento, isso não parece nada demais. Afinal, é só uma palavra, não é? Se “o chapéu serviu”, o problema é seu. E fazemos isso o tempo inteiro, não fazemos? Dar apelido para grupos de pessoas. “quatro olhos”, “baleia”. “piriguete”, “funkeiro”. Crioulo. Viado. De fato, as palavras não são o problema, e sim o significado que damos para elas. Mas não o significado dado por quem recebe o termo, e sim por quem o envia.

Para onde você olhar, vai ter alguém falando no quanto estamos “polarizados” hoje em dia. Essa é a palavra do momento. E não é por acaso, claro; depois de tantas mudanças sociais, parece que estamos a cada dia mais longe de sermos capazes de compartilhar diferenças. Mas o termo polarização não dá conta de descrever o que vivemos hoje. É mais do que isso. Vivemos um momento de demonização geral.

Antes, a demonização era um fenômeno que ao menos parecia reservado a grandes conflitos ou manipulações políticas - e apenas numa pequena medida no dia a dia. Hoje, aquilo que generais e políticos fazem para levar as massas a concordarem com a morte de outros seres humanos é a tática que nós, como indivíduos, usamos todos os dias.

Quando chamamos uma mulher que se considera feminista de “feminazi”, nós estamos dando uma mensagem muito clara: ela é um monstro que não merece a menor consideração. Não é possível debater, não é possível consenso. E, assim como os americanos fizeram com os nazistas, só resta uma opção: eliminar a ameaça por completo.

O mesmo vale para qualquer outro termo que eu mencionei e diversos outros. Um “bolsomínion" é um acéfalo, não pensa, não adianta discutir. Só podemos eliminá-lo. Os “crentes” são religiosos, fanáticos, não ouvem a razão. São todos iguais.

O crescimento da demonização - e, por consequência, da extinção do diálogo e da busca por consenso - é certamente potencializado pelas redes sociais. No twitter, Facebook, Instagram todo mundo é formador de opinião para algum grupo de pessoas, grande ou pequeno. E um termo como “Coxinha” se torna um pacote (talvez um “meme”, no sentido Richarddawkinsiano do termo) que facilmente se dissemina para um grande número de pessoas e se torna a normal.

O resultado é um julgamento automático, que um simples computador é capaz de realizar. Defende a iniciativa privada em alguma instância social? Coxinha. É empresário? automaticamente coxinha. Não quero saber porque você defende a iniciativa privada ou se o que você defende tem pontos válidos. Não quero saber o quanto você lutou para chegar onde você chegou com sua empresa, nem o quanto você é responsável com seus funcionários, com seus gastos e com a sociedade. Até nossos smartphones, que são máquinas que não pensam, são capazes de decisões mais sofisticadas que esse modelo de pensamento.

Quando você reduz uma pessoa a um termo depreciativo, ela deixa de ser uma pessoa e se torna uma caricatura, um resumo mal feito. Uma ficção. Na ficção, as coisas fazem mais sentido se entendidas como dois pólos opostos, o bem e o mal. E você tem que ser o bem, certo? Então, o outro tem que ser o mal. E o mal tem que ser eliminado, pois é assim que todas essas histórias terminam: elimina-se o mal, e todos os bons são felizes para sempre.

As redes sociais (ou, melhor dizendo, o uso que fazemos das redes sociais) transformaram o cotidiano numa grande narrativa de ficção onde cada um de nós pensa que é o protagonista. Cada um de nós pensa que é o mocinho. Não é de surpreender que não nos importemos mais se as informações são falsas ou não; numa ficção, a verdade é aquilo que mostra quanto eu sou herói e o quanto o outro é o vilão.


Uma das consequências dessa mentalidade como regra é fácil de perceber: não há espaço para diálogo e, por consequência, não há espaço para consenso. Sem consenso, quem tem mais poder (seja físico, financeiro ou psicológico - dependendo do contexto) acaba tomando as decisões por todos. Outra consequência é que acabamos vivendo numa bolha imaginária, onde qualquer um que se aproxime é uma ameaça. Uma bolha que, quanto mais isolada, mais frágil é. Por fim, no caso de uma real ameaça (algo que pode realmente prejudicar), tendemos a ridicularizá-la e diminuí-la ao invés de dar a devida atenção e importância.

E isso não tem nada a ver com criticar o outro. É possível criticar, discordar e até considerar nocivo o pensamento do outro sem reduzí-lo a um estereótipo monstruoso. Não me refiro a criar um mundo onde nada pode ser criticado, muito pelo contrário: minha preocupação é, justamente, que o distanciamento voluntário cada vez maior entre visões conflitantes esteja nos levando a um mundo onde nada poderá ser criticado.

Talvez essa tendência a demonização seja “natural”. Provavelmente sempre esteve presente na história da humanidade em maior ou menor grau. Mas a configuração social atual, com internet criando uma rede onde ideias se disseminam muito mais rápido do que o tempo que temos para assimilá-las (e num mundo onde se exige rapidez na tomada de decisões em detrimento da eficiência ou justiça dessa decisão) multiplica isso de uma forma que não podemos voltar atrás. Precisamos repensar como nos comportamos com relação àqueles com quem não concordamos ou, mais cedo ou mais tarde, todo mundo será seu inimigo.

Mas isso não tem nada a ver comigo, você pensa. Eu sou justo. Quem faz esse tipo de coisa são os fanáticos religiosos, os políticos safados, os senhores da guerra. Os verdadeiros monstros. Pois é. Dizem que a beleza está nos olhos do observador. Mas a monstruosidade também.