Cancelamos nossa matrícula na democracia - mas sempre há tempo de voltar para a escola

Há muitas conversas sobre a ideia do Impeachment da presidente e sobre o que isso significa para o país. Uma das principais é a comparação (natural) com o outro impeachment que tivemos, do ex-presidente Collor. Eu era novo demais para ter me importado com o que aconteceu na época, quando Collor sofreu Impeachment, mas não pretendo fazer disso uma análise política nem entrar no debate da validade ou não do processo atual nem da semelhança ou não entre os dois processos. O que me interessa aqui é o que isso pode trazer para o Brasil a curto, médio e longo prazo.


Desde 1964, tivemos apenas 4 presidentes eleitos diretamente. Destes, metade sofreu impeachment*. Isso é lamentável. Mas não é motivo para que um Impeachment não seja feito. É claro que isso também não é algo do qual devemos nos orgulhar, independente de para qual time o brasileiro torce neste jogo. Ainda assim, é algo no qual podemos aprender como cidadãos e como povo.

O que um segundo impeachment em menos de 25 anos revela sobre o Brasil é que nós não entendemos e não gostamos de democracia. Se o Brasil pudesse ser comparado a uma escola, o povo seria aquele aluno que não gosta de estudar, é muito fraco em todos os conteúdos, mas que os professores, por motivos diversos, continuam aprovando. Assim, este aluno vai empurrando cada ano letivo com a barriga e acumulando dificuldades até chegar um ponto em que as lacunas se tornam impossíveis de ignorar e ele não consegue mais seguir adiante. O resultado mais comum é o aluno deixar a escola, frequententemente antes de seguir para o ensino superior - muitas vezes antes de chegar ao ensino médio.

Nesta alegoria, se o povo é o aluno, a educação formal é a democracia. Desde que nos tornamos uma república (ou seja, bem antes do regime militar esquecer a democracia), temos dificuldade em entender o que é a democracia, como ela funciona e o que significa viver em um Estado Democrático. Por conta disso, nossa história foi uma turbulenta sequência de sucessões ilegítimas, golpes militares, estratégias populistas e muito, mas muito pouco de uma democracia de verdade.

E assim seguimos, como aquele aluno da alegoria, sem entender direito como a democracia funcionava, não querendo entender e esperando acabar logo com isso, empurrando, assim, cada eleição com a barriga. Eventualmente, não ia mais dar para ignorar as lacunas de nossa compreensão a esse respeito e algo iria acontecer. Aconteceu. Com a reeleição de Dilma, desistimos da democracia. E, com o processo de Impeachment, cancelamos nossa matrícula na escola. As consequências disso serão profundas. Mas não precisam ser ruins.



Este aluno alegórico, que acabou saindo da escola pelas lacunas de conhecimento acumuladas ao longo dos anos, não precisa ter um destino ruim. Sua trajetória de vida pode levá-lo a um amadurecimento, a repensar suas decisões, e até a decidir voltar para a escola. Mesmo com dificuldade, ele pode terminar o ensino de base, desta vez com menos lacunas de conhecimento. E o sucesso dessa empreitada pode até estimulá-lo a cogitar entrar no ensino superior. Houve desvios no seu curso de vida, mas isso não o impede de reencontrar o caminho novamente. E, provavelmente, com mais maturidade e mais controle do que realmente quer.

A grande ironia, neste caso, é que o reconhecimento do problema, que causou a saída do nosso aluno alegórico da escola, talvez tenha resultado em uma coisa boa: ele voltou à escola mais consciente do seu papel como aluno e com mais foco nos seus objetivos. Talvez até tenha passado a entender a importância da educação e de estudar, algo que ele não teria se não tivesse tido esse desvio de curso. E esse amadurecimento certamente se refletirá na educação que ele der aos filhos.

A lição que podemos tirar com essa alegoria é que problemas não podem ser ignorados para sempre. Eventualmente, vem a conta. E, quanto mais tempo ficamos acumulando problemas que ignoramos, maior será o golpe** quando a situação atingir seu ponto crítico. É basicamente o que tem acontecido. Mas, ao mesmo tempo, sem que os problemas atinjam um ponto onde temos que encará-los e lidar com eles não há mudança, não há progresso.

Assim como esse aluno alegórico, o povo brasileiro ainda pode sair deste período sociopolítico turbulento melhor do que quando entrou. Agora que somos capazes de reconhecer o problema, somos capazes de superá-lo. Cancelamos nossa matrícula na escola, mas ainda temos que encarar a vida, e eventualmente podemos entender o quão importante é uma educação formal para nosso futuro. Como povo, talvez possamos agora começar a entender o quão importante é participar cada vez mais do processo político. E quem sabe assim possamos entender cada vez mais o que a democracia significa… E até sonhar com nosso dia de formatura.


-----------

Referência das imagens:
Imagem 1; imagem 2


*Tecnicamente, no momento em que escrevo este texto Dilma acaba de ser afastada para o processo seguir adiante, não sofreu impeachment per se, mas para efeitos de argumentação estou usando a premissa do fato ser, eventualmente, consumado.
**trocadilho não intencional