O covid-19 não vai embora, mas a vida vai seguir em frente (e isso não é bom)

Há muitas ideias diferentes sobre qual vai ser o futuro do mundo pós-pandemia. As previsões variam de volta à normalidade no próximo ano até a continuidade do problema por anos a fio. A verdade é que não dá para saber o que vai acontecer, mas se eu tivesse que dar um palpite, baseado no que sabemos sobre o vírus no comportamento social, eu apostaria que tudo vai mudar...e nada vai mudar.


Se você mora numa cidade grande e tem mais de 40 anos deve ter um pensamento em comum com a maioria das pessoas da mesma idade: a sensação de que sua cidade está ficando cada vez mais violenta e perigosa, e que quando você era criança você podia brincar na rua sem problemas, diferente de hoje em dia. Essa sensação de insegurança aumenta significativamente conforme vamos ficando mais velhos. Ao mesmo tempo em que ficamos reclamando do quanto nossa cidade está perigosa, o que de fato tentamos fazer para mudar esse cenário? Participamos mais ativamente da comunidade? colaboramos mais frequentemente com a polícia? Mudamos para uma cidade mais tranquila? Na quase totalidade das vezes, a gente só faz é reclamar mesmo. Mas segue com a vida.

Precisamos reconhecer que muito da nossa sensação de insegurança vem de fatores psicológicos e não de um perigo real. Um deles é a memória afetiva, que faz com que a gente enxergue os eventos passados como menos “ruins” do que o que quer que esteja acontecendo no presente. Outro é a frequência de reportagens sobre violência urbana, que faz parecer que o cenário é apocalíptico. Também precisamos ter em mente que a sensação de insegurança não necessariamente corresponde à real falta de segurança. É absurdamente mais provável que você sofra um acidente de trânsito do que de avião, mas as chances são que você se sente muito mais inseguro num avião do que no trânsito. 

Mas nem tudo é memória afetiva. Quanto mais uma cidade cresce, mais pessoas de fora são atraídas em busca de melhores oportunidades de vida e obviamente não há trabalho para todo mundo. Ou seja, ao menos uma parte dessas pessoas acabarão nas ruas sem poder/querer voltar pra casa, mas também sem emprego e sem oportunidade. Para conseguir lidar com essas questões, frequentemente essas pessoas recorrem às drogas. Além disso, quanto mais gente, maior facilidade de se “esconder na multidão”, o que facilita crimes como tráfico de drogas. Eu poderia seguir com muitos outros exemplos e, sim, essa é uma simplificação grosseira, mas o que importa é que, quando maior a cidade, mais crimes acontecem. Claro, temos exemplos de cidades menores com proporcionalmente mais crimes e cidades maiores com proporcionalmente menos, mas a tendência geral é normalmente essa.

Mas uma cidade não cresce da noite pro dia, esse processo é gradual – assim como o crescimento da violência. E é aí que entra uma habilidade incrível do ser humano que muitas vezes é uma bênção: nossa capacidade de se adaptar. O ser humano só tem dificuldade de adaptação quando as mudanças são súbitas. Mas quando elas acontecem gradualmente, ou sutilmente, no momento em que a situação se tornou muito maior do que no começo, nós já estamos adaptados (psicologicamente, pelo menos) sem nem mesmo perceber. Aquilo que, se acontecesse de forma súbita, seria motivo para decisões de vida importantes, passam a ser apenas parte das “coisas como elas são” quando crescem gradualmente. 

É exatamente isso o que acontece com as grandes cidades e é o motivo pelo qual conseguimos suportar viver em cidades que realmente são muito perigosas. Nós nos acostumamos que esse tipo de coisa é parte das coisas como elas são e, apesar de continuarmos reclamando, seguimos sem fazer nada de fato para mudar. E o que nós fazemos? Adaptamos nossa vida para continuar seguindo como se tudo estivesse normal, como se não houvessem pessoas morrendo todos os dias em favelas por todo o país. Como se não houvesse milhares morrendo de fome. Porque pobreza também é apenas “parte das coisas como elas são”, não é?  Ao invés de trabalharmos para tentar eliminar esses problemas, acabamos naturalizando-os, nos adaptamos e seguimos com a vida.

Eu poderia citar outros diversos exemplos, não só com relação a questões socioeconômicas, mas também de saúde. A AIDS já foi o “coronavírus” do seu tempo. Assim como o câncer. De tempos em tempos, surge algum vírus ou alguma doença que por um tempo é considerada o fim do mundo... e depois nos acostumamos com as mortes. Ainda não há uma cura definitiva para a AIDS, mas felizmente hoje é possível conviver com a doença. Mas câncer ainda é um grande problema que está longe de ter uma cura.

Sim, o coronavírus é diferente da AIDS. Não se transmite apenas por via sexual, por exemplo. E, apesar de não ser tão mortal quanto outros vírus por aí, é extremamente eficiente em se disseminar. Ou seja, parece uma situação muito mais preocupante.  A boa notícia é que, diferente do câncer, mais cedo ou mais tarde teremos uma vacina eficiente contra o coronavírus. A má notícia é que isso não vai fazer o vírus sumir.

Baseado no que se tem compreendido até agora sobre o vírus e sobre o comportamento dele na população, é provável que ele não desapareça por completo e fique circulando por aí, criando novos surtos de tempos em tempos. E não temos ainda muita confiança de que quem pegou o vírus adquira imunidade a ele, ou seja, é possível que mesmo quem já pegou antes pegue outras vezes – não necessariamente com os mesmos resultados (nota: ao postar esse texto acabo de ler sobre o primeiro caso confirmado de reinfecção pelo vírus). Há quem diga que o isolamento é um problema e basta deixamos o vírus fazer o seu trabalho até que todo mundo tenha imunidade o bastante, mas a coisa não é assim tão simples (mesmo que a gente adquira de fato imunidade ao vírus, expor todo mundo levaria literalmente anos e uma pilha de mortos).

Essa pandemia seria uma boa oportunidade para revermos nossas visões de mundo. Seria o momento de entendermos o que significa realmente viver em sociedade: ajudar o próximo quando precisa, mas também entender que sua decisão pessoal em relação pode ter grande impacto na vida da comunidade como um todo (no caso de você, por exemplo, não querer levar a sério uma pandemia). Também seria uma boa chance de repensarmos nossa sociedade, de considerar se realmente vale a pena seguir vivendo para fazer funcionar uma máquina econômica que não é capaz de devolver essa devoção quando as pessoas mais precisam. De encontramos novas formas de manter as pessoas seguras, de investir mais em ciência. Não faltariam motivos para repensarmos a forma como a sociedade é constituída hoje.

Seria uma boa oportunidade... Não fosse o fato que nossa incrível capacidade de se adaptar também pode ser uma maldição. Apesar de ter acontecido de forma súbita, a pandemia tem demorado tempo o bastante para que as pessoas começassem a aprender a “funcionar normalmente” dentro dos limites da pandemia (ou às vezes ignorando completamente esses limites). Então, ao invés de nos unirmos para manter todos seguros até que a ciência desenvolva uma vacina, ou exigir mais investimento em ciência, nós simplesmente... seguimos em frente. Contornamos os problemas, fazemos alguns ajustes e voilá, vida que segue.

Essa adaptação já tem acontecido, não é mais nem novidade. Alguns lugares já estão abrindo novamente, alguns seguem trabalhando home office, etc. Mas, em termos de mudança, mudança mesmo, nós estamos longe daqueles momentos iniciais da pandemia, onde tudo parecia incerto e nos sentíamos extremamente inseguros. Já estamos na fase de apenas reclamar da inconveniência de não ter mais a liberdade de antes... mas seguimos como se tudo tivesse normal. Assim como fazemos com a miséria, com a violência urbana e com o câncer.

Muita gente tem usado o termo “novo normal”. Você pode achar que esse é apenas um termo modinha (também é), mas é uma forma (deliberada ou não) de tentar nos convencer de que as coisas não vão mais voltar a ser como era antes, que é bom se acostumar. Não que seja preciso muito esforço. Isso também é algo bastante humano: qualquer coisa que nos faça ter um mínimo daquilo que considerávamos “normal” vai ser algo no qual nos agarraremos com unhas e dentes. Só que a comparação entre violência urbana e pandemia só funciona até certo ponto. Há uma dinâmica envolvendo a disseminação de vírus que faz com que a tentativa de retorno à normalidade tenha efeito contrário e dificulte esse retorno. Por isso, todos aqueles que ignoram as principais recomendações de segurança contribuem para que nada volte a ser como antes.

Nós sabemos que, apesar das frases motivacionais das redes sociais, nós não vamos aprender nada com essa pandemia. Sabemos também que nós vamos continuar tendo que procurar emprego (ou seguir com o que temos), que a violência urbana vai continuar, assim com a miséria e a fome. Vamos continuar rejeitando a ciência que salva nossas vidas dia a pós dia e seguir acreditando em notícias falsas de whatsapp. Vamos continuar brigando nas redes sociais por coisas estúpidas enquanto os políticos nos passam a perna. É o que sempre fizemos e o que fazemos melhor: seguir em frente como se nada estivesse acontecendo. Ironicamente, é essa noção de "seguir em frente" que nos impede de progredir de fato.

Então, de certa maneira, nada vai voltar a ser como antes. O mundo pós pandemia vai levar em consideração que o coronavírus pode voltar a qualquer momento. Mas, ao mesmo tempo, vamos seguir fazendo nossas coisas como sempre, no máximo fazendo alguns ajustezinhos e adaptações na nossa vida para lidar com esse “mero” inconveniente. Com o tempo, o que antes pareciam ajustes vão se tornar cotidiano. Vida que segue, mas não progride.

Tudo vai mudar... e nada vai mudar. Quanto tempo vamos poder continuar vivendo nessa negação coletiva antes que não seja mais possível "seguir em frente"? Essa é uma boa pergunta.