A tecnologia não piora nada; quem piora somos nós

Já faz um bom tempo que eu leio e ouço comentários depreciativos a respeito de aspectos particulares de nossa evolução tecnológica - em particular, as tecnologias de interação pessoal e comunicação. Coisas como “as redes estão nos tornando antissociais”, “As pessoas vão desaprender a escrever”, “a linguagem vai ser substituída por emoticons”, e por aí vai. Não é nem um pouco desprezível o número de pessoas que acredita nessas afirmações que, diga-se de passagem, não são ditas por pessoas delirantes, malucos extremistas ou incultos; pelo contrário, são afirmações expressas frequentemente por pessoas com grande bagagem cultural e intelectual, e que possuem um nível relevante de educação formal.


Vou contar para vocês uma história curiosa da Filosofia, pouco mencionada por aí - talvez por que, até então, não era assim tão relevante: Sócrates foi o primeiro hipster. Explico. Para quem não sabe, Sócrates é considerado o “pai" da Filosofia (embora tenham existido outros Filósofos antes dele, é com Sócrates que esse campo de estudo passa a ser uma reflexão voltada para o homem, a sociedade, suas idiossincrasias e expressões). Apesar de sua importância para a Filosofia, Sócrates nunca escreveu nada. Tudo o que conhecemos dele vem de outras pessoas, discípulos, amigos, admiradores e historiadores da época.

O que pouca gente sabe é que Sócrates nunca escreveu porque era contra a escrita.



Para contextualizar: na época, escrita era algo relativamente novo na Grécia Antiga. Uma nova tecnologia que estava mudando toda a forma como os gregos se comunicavam. Não era mais preciso memorizar longas sentenças, vastas linhas de conhecimento ou extensas narrativas; tudo podia estar registrado para ser lido.

Também não era mais necessário estar na praça para ouvir poetas declamarem poesias; uma vez que alguém as estivesse escrito, era só ter acesso ao texto para lê-lo. Não era mais necessário estar sempre num determinado lugar a determinada hora para alguém falar, nem se preocupar com chegar atrasado ou ter que sair antes por conta de algum compromisso e perder parte importante do que teria sido dito (ou ter que confiar na memória de outras pessoas para lhe contar); com o mesmo texto escrito, era possível ler e reler quando quisesse, a hora que quisesse, e quantas vezes quisesse.

Acontece que nem todo mundo na Grécia Antiga estava animado com essas novas possibilidades. Havia um grande número de pessoas que torcia o nariz para essa nova tecnologia, uma delas o próprio Sócrates. Essas pessoas conservadoras, a maior parte delas culta (não cometa o erro de confundir conservadorismo com burrice), não eram apenas birrentos que não queriam a mudança. Estas pessoas tinham argumentos válidos. Ou pelo menos aparentemente válidos.

Dá para ter uma ideia de alguns destes argumentos: A escrita vai acabar com a reunião de pessoas na praça, ninguém mais vai querer ouvir outras pessoas falarem, ninguém mais vai querer falar, as pessoas não terão mais a capacidade de memorizar coisas, todo mundo vai desaprender a falar. E por aí vai.


É claro que nada disso aconteceu. Continuamos nos reunindo em grupos, continuamos memorizando coisas, continuamos falando e ouvindo as pessoas falar e, principalmente, não desaprendemos da língua por causa da escrita, muito pelo contrário; a escrita é, por definição, a base da sociedade ocidental moderna. Escrever é sinônimo de alfabetização, sem saber ler e escrever, você não tem acesso ao mundo, não interage com o mundo (ou o faz de forma muito limitada).

A escrita se tornou algo tão profundamente ligado a como nossa sociedade funciona e como interagimos uns com os outros é difícil pensar numa época em que a escrita não existia. Mais ainda: a ideia de que alguém pudesse ter sido contra isso soa ridícula, ainda mais pessoas tão admiradas e referência para o pensamento intelectual como Sócrates.

Pense no quanto teríamos perdido, intelectualmente, sem que grandes pensamentos, teorias e narrativas tivessem sido escritas e, portanto, pudessem ter sido difundidas para um número enorme de pessoas durante gerações. Pense na quantidade de Filósofos cujos pensamentos nunca teríamos conhecido - e talvez nunca tivessem influenciado nossa sociedade como influenciaram - se eles não tivessem escrito nada. Pensem nas ideias revolucionárias que nunca teriam sido compartilhadas.

Esse pequeno recorte da História da Grécia Antiga pode nos ensinar muita coisa sobre o momento em que vivemos. É um alerta para o alarmismo constante que vem com a evolução tecnológica e um importante aprendizado sobre o exagero com relação às consequências negativas das mudanças. Um aprendizado que pode ir além deste tópico e alcançar outros tipos de mudanças - sociais, econômicas, políticas.

Toda mudança vem com desconfiança, especialmente se for nova - por “nova”, entenda algo que foge da caixa que delimita até onde vai nossa mentalidade - e fazer previsões negativas, especialmente usando falácias de declive escorregadio (onde se alega que uma mudança acarretará em consequências muito desproporcionais) é a defesa mais natural. A diferença entre o momento em que vivemos e a Grécia Antiga é que já estamos muito longe das primeiras grandes civilizações, e já aprendemos muito. Temos milênios de História humana para basear nossa tomada de decisões, para comparar, aprender e, mais importante, agir diferente.

Não precisamos ter medo da mudança. Se nada muda, nada melhora. Pode piorar? Claro que pode. Mas, se piorar, isso também é passível de mudança. É claro que sempre haverá consequências consideradas negativas, mas, com objetividade, é possível enxergar além da resistência natural à mudança e perceber que, normalmente, o problema não é o que mudou. E sim o que não mudou.

Para encerrar, cito Sócrates (ironicamente, não o Filósofo, e sim um frentista de um posto de gasolina)*:
"Para se livrar dos velhos padrões, concentre todas as suas energias não em lutar contra o antigo, mas em construir o novo."



*Apenas em nível de curiosidade: Esta frase, em uma versão um pouco modificada, circula na internet atribuída ao Sócrates real. Na verdade, ela é de um frentista presente em um livro chamado "Way of the Peaceful Warrior" (O Caminho do Guerreiro Pacífico), de 1980, em que um ginasta de classe média, Dan Millman, narra os desafios físicos e intelectuais de sua vida e o crescimento espiritual que experienciou. O catalisador de sua jornada espiritual foi o frentista, que acabou se tornando uma espécie de mentor para o autor do livro, em 1966. "Sócrates" foi o apelido que o autor deu ao homem, por conta de sua sabedoria popular.